BRASÍLIA – O almirante Almir Garnier Santos, comandante da Marinha no governo de Jair Bolsonaro (PL), afirmou, em depoimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (10), que participou de uma reunião no Palácio da Alvorada em que foi discutido o “cenário político e social” do país após a vitória de Luiz inácio Lula da Silva (PT) nas urnas.
Ele também citou que um dos assuntos tratados no encontro no Alvorada, onde Bolsonaro ficou recluso após a derrota, foi a possibilidade de implantação de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). “Algo apresentado numa tela de computador, onde não se aprofundou em nada. Era parte de uma análise do cenário político e social do Brasil naquele momento”, contou o almirante.
Garnier é o primeiro réu a depor no segundo dia de interrogatórios dos integrantes do chamado “núcleo 1” ou “núcleo crucial” da suposta trama golpista contra Lula. Os interrogatórios são comandados pelo ministro Alexandre de Moraes e acontecem na sala de sessões da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF).
O núcleo 1 tem oito réus, incluindo Bolsonaro. Os depoimentos começaram na segunda-feira (9). A Primeira Turma julga a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Baseada em investigação da PF, ela diz que o grupo encabeçado por Bolsonaro teve papel central na tentativa de ruptura institucional. A denúncia foi aceita pelo STF em março.
Os réus respondem por tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, tentativa de golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas podem chegar a 43 anos de prisão.
Na denúncia ao STF, a PGR afirmou que Garnier participou de uma reunião sobre a “minuta do golpe” e que a prova disso é o registro de seu nome na lista de entrada e saída do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente em Brasília.
Garnier foi apontado, nas investigações, como o único comandante das Forças Armadas que colocou sua tropa à disposição de Bolsonaro para uma suposta intervenção militar. O almirante teria se manifestado favorável a um golpe durante reunião no Alvorada.
A adesão dele ao suposto plano foi identificada pela Polícia Federal (PF) em mensagens apreendidas no celular do tenente-coronel Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro e firmou acordo de delação premiada, e em depoimentos das outras forças militares.
Carlos Almeida Baptista Junior, que comandou a Aeronáutica no governo bolsonaro, afirmou em depoimento que ele, o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, tentaram “demover” Bolsonaro da intenção golpista, mas em uma reunião, “chegou ao ponto em que ele [Garnier] falou que as tropas da Marinha estariam à disposição”.
Na defesa prévia apresentada ao STF no recebimento da denúncia da PGR, advogados de Garnier negaram a prática de qualquer conduta criminosa pelo almirante. “A PGR não apresentou provas mínimas de sua participação ativa ou direta nos supostos atos de violência ou na execução de quaisquer medidas contrárias à ordem constitucional”, alegaram.
Mauro Cid narrou pressão contra comandantes das Forças Armadas
No primeiro dia de depoimentos dos réus do núcleo 1, na segunda, foram ouvidos Mauro Cid e Alexandre Ramagem. Cid narrou o plano de militares das Forças Armadas para pressionar os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica a aderir a um golpe de Estado em 2022.
“Existia essa pressão para que se o general Freire Gomes [então comandante do Exército] não tomasse alguma atitude [favorável a uma intervenção militar contra a posse de Lula], que se colocasse militares que pudessem tomar alguma atitude”, afirmou Cid.
“O teor das conversas era nesse sentido, por isso não sabia distinguir o que era real e o que era bravata de Whatsapp. Mas a conversa era nessa toada de pressionar os comandantes a tomar decisão”, prosseguiu Cid ao ser questionado sobre os diálogos travados em grupos de Whatsapp.
Bolsonaro e os outros seis réus do núcleo 1 estavam presentes na sala da Primeira Turma, onde ocorrem os depoimentos conduzidos por Moraes.
Cid disse ainda que Bolsonaro pressionou o então ministro da Defesa em relação a um relatório sobre a lisura do processo eletrônico de votação. Questionado por Moraes, o ex-ajudante de ordens afirmou que Bolsonaro queria um documento “duro” contra as urnas.
“Eu não sei se foi por ligação, por conversa particular, mas essa pressão realmente existia. O general Paulo Sérgio tinha uma conclusão nesse documento voltado para um lado mais técnico. E se tinha a tendência de fazer algo voltado mais para o lado político. E acabou que, no final, chegou-se a um meio termo que foi o documento que foi produzido e assinado”, disse Cid.
A convite do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), então presidido por Alexandre de Moraes, as Forças Armadas indicaram representantes para participar de uma comissão de fiscalização das eleições em 2022. Relatório entregue pelos militares não apontou fraude, mas não descartou a possibilidade de falhas, mesmo sem evidências concretas.
Cid confirma que Bolsonaro leu e editou ‘minuta do golpe’
Mauro Cid também confirmou a existência da trama golpista, mas negou participação. Também disse que o então presidente Jair Bolsonaro recebeu, leu e editou a chamada “minuta do golpe”, que poderia ser usada para impedir a posse de Lula.
“Ele enxugou o documento, retirando as prisões. Apenas o senhor [Moraes] ficaria preso”, disse Cid, que era ajudante de ordens na ocasião. Ele respondeu à pergunta de Moraes sobre confecção de documentos que eram levados a Bolsonaro, então recluso no Palácio da Alvorada, para tentar anular a eleição presidencial.
“O senhor aponta que várias reuniões ocorreram para discutir reversão das eleições e que um dos que participavam era Felipe Martins, acompanhado de um jurista. Mais de duas reuniões com Bolsonaro, apresentaram documento”, disse Moraes.
“Em termos de data, não me lembro bem. Duas ou, no máximo, três reuniões, em que esse documento foi apresentado ao presidente [...], listavam as possíveis interferências do STF e TSE (Tribunal Superior Eleitoral) no governo e nas eleições, e outra parte entrava em estado de defesa, estado de sítio, prisão de autoridades e conselho eleitoral para refazer as eleições, algo parecido”, contou Cid.
Moraes pediu nomes de prováveis alvos do grupo. “Ministros do STF, presidente do Senado, autoridades do STF e do legislativo”, respondeu Cid. “Qual seria a função da comissão?”, questionou novamente o ministro. “Conduzir nova eleição”, afirmou o tenente-coronel. Em seguida, Moraes perguntou se Bolsonaro leu o documento e fez alterações. Cid confirmou.
Veja quem será ouvido pelo STF nesta semana
Mauro Cid foi o primeiro interrogado. Como ele fechou acordo de colaboração premiada, os demais acusados têm o direito de falar por último. Cid é considerado peça-chave por ter sido um dos mais próximos auxiliares de Bolsonaro nos quatro anos do governo do ex-presidente, apontado pela PF e PGR como líder do grupo que planejou um golpe.
Além de Cid, veja quem são outros réus, que serão ouvidos por ordem alfabética:
- Alexandre Ramagem, deputado federal e ex-chefe da Abin
- Almir Garnier, ex-comandante da Marinha
- Anderson Torres, ex-ministro da Justiça
- Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do GSI
- Jair Bolsonaro, ex-presidente da República
- Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa
- Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, e vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022
No caso de Braga Netto, o interrogatório será feito por videoconferência. O militar da reserva está preso desde dezembro sob a acusação de obstruir a investigação sobre a tentativa de golpe de Estado e obter detalhes da delação de Mauro Cid.
As sessões serão presenciais e ocorrerão na sala de sessões da Primeira Turma. Os depoimentos serão realizados pelos próximos cinco dias na sala da Primeira Turma da Corte e serão transmitidos ao vivo pela TV Justiça.
À exceção desta segunda, quando a sessão começou à tarde, nos demais dias haverá sessão de manhã e à tarde.
Durante as oitivas, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, e as defesas dos demais acusados também podem fazer perguntas aos acusados.
O interrogatório dos réus é uma das últimas fases da ação penal. A expectativa é de que o julgamento que vai decidir pela condenação ou absolvição deles ocorra no segundo semestre deste ano. Em caso de condenação, as penas am de 30 anos de prisão.
Por estarem na condição de réus, os acusados poderão se recusar a responder perguntas que possam incriminá-los. A Constituição garante aos investigados o direito de não produzir provas contra si.
No caso de Alexandre Ramagem, a investigação sobre fatos ocorridos após sua posse como deputado federal, em janeiro de 2023, está suspensa até o fim do mandato.