Há cinco anos, um pedido despretensioso começou a transformar a vida da artesã Antônia Fortes, de 65 anos. Acostumada a confeccionar e a presentear amigos com terços, a moradora de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, recebeu uma encomenda para pintar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A princípio, a insegurança tomou conta de Toninha, como é carinhosamente chamada, mas ela decidiu aceitar o desafio. O resultado a surpreendeu tanto que, desde então, encontrou na fé, além de inspiração, uma fonte de renda.
Assim como Toninha, diversos empreendedores têm visto na crença religiosa uma forma de sustentar não só a alma, mas também o corpo físico e a vida terrena. Conforme um levantamento do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae Minas), de 2024 para 2025 houve um crescimento estimado de 8,6% no número de comércios de artigos religiosos no Estado, ando de 152 para 165. No entanto, conforme a organização aponta, a listagem pode não incluir todas as empresas do segmento, já que algumas podem operar com nomes ou classificações diferentes. Ou seja, o número de negócios focados em atender as necessidades de religiosos pode ser ainda maior.
Nesse cenário, Toninha considera a capacidade de produzir peças religiosas um “dom dado por Deus”. “Era algo que eu não sabia que tinha como eu fazer, mas acabou sendo despertado por uma pessoa muito simples, que me fez o pedido. Sou muito grata a Deus por isso. Este mês, por exemplo, estou com muitas restaurações e novas pinturas para fazer. Uma delas é a de um presépio, que está ficando bem bonito”, diz ela.
Toninha considera o artesanato que faz como 'dom de Deus' (Fred Magno / O TEMPO)
A artesã conta que, em alguns meses, o movimento é mais fraco, mas isso não a desanima. “A gente vai levando. O bom é que meu público é minha maior propaganda. Um vai indicando para o outro – é o famoso ‘quem indica’. Considero as imagens que restauro como relíquias, porque, na maioria das vezes, o cliente tem um grande apreço por elas. Ou ganhou de alguém especial, ou comprou em alguma viagem. De certo modo, meu trabalho dá continuidade à fé que a pessoa tem no santo de devoção”, afirma.
Atualmente, o ofício artesanal é a principal fonte de renda de Toninha. “Tive um problema com a minha aposentadoria, e esse trabalho tem sido o que garante meu dinheirinho. Com ele, além de arcar com os compromissos mensais, consigo comprar novas peças para dar continuidade aos artesanatos”, conta.
Pedido inusitado acabou se transformando na principal fonte de renda de Toninha (Fred Magno / O TEMPO)
Mercado em expansão e resiliente
Conforme Victor Mota, analista do Sebrae, além de estar em expansão, o mercado de artigos religiosos apresenta forte resiliência, sendo uma oportunidade promissora para empreendedores atentos às necessidades do público. Além disso, Minas Gerais apresenta características atraentes para a área. Dados que compõem o “Censo 2022 – Religiões: Resultados Preliminares da Amostra”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados nessa sexta-feira (6 de junho), mostram que menos de 6% da população mineira não tem religião. Católicos e evangélicos somam mais de 16 milhões de pessoas, representando 63,5% e 24,8% da população, respectivamente. Logo depois vêm os fiéis de outras religiosidades, que são 584,6 mil pessoas (3,2%), e a população espírita, com 390,3 mil praticantes (2,2%). Os adeptos da umbanda e candomblé são 0,5%, e os de tradições indígenas, 0,02%.
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“Investir no mercado de artigos religiosos em Minas Gerais pode ser uma oportunidade estratégica, especialmente diante do crescimento da religiosidade e da diversidade de práticas espirituais no Estado. Esse setor, embora muitas vezes informal ou pulverizado, apresenta características únicas, que o tornam atrativo para empreendedores atentos às demandas culturais e sociais da população”, diz ele, citando a demanda constante, a diversificação de produtos e o turismo como bons atrativos desse mercado.
Conforme Mota, o mercado é promissor por três razões principais: “crescimento da espiritualidade e busca por sentido, especialmente em tempos de crise, o que impulsiona o consumo de itens religiosos; digitalização do setor, com lojas expandindo suas operações para o e-commerce; e tradição cultural, como a valorização da arte sacra mineira”.
A economia, porém, não é o único foco. Além da renda gerada pela comercialização, os produtos têm um caráter evangelizador. É o que afirma o subgerente da Loja Ômega, Marcos Pereira, de 25 anos, especializada em artigos evangélicos, na unidade do centro de Belo Horizonte. “O nosso jargão é: ‘Tudo aquilo que o cristão precisa em um só lugar’. As pessoas vêm procurar os materiais muitas vezes não só para uso próprio, mas também para evangelização. Isso é bom, pois praticamos aquilo que Cristo nos pede: ‘Ide’.”
A loja comercializa desde Bíblias e livros até vestuário. “Vai muito além da venda – temos o caráter evangelizador. Vender é importante, pois é o nosso trabalho e precisamos nos sustentar. Contudo, o nosso intuito é levar a palavra de Deus por meio do nosso comércio. Nossos produtos são bem selecionados, porque lidamos com a fé das pessoas e, acima de tudo, somos pregadores. É certo que não estamos na igreja, mas estamos transmitindo a palavra do Salvador”, diz.
Marcos Pereira (à esquerda) diz que o comércio religioso também tem caráter evangelizador (Fred Magno / O TEMPO)
Público fiel
Essa fidelidade aos princípios de cada religião não parte somente dos empreendedores, mas também dos consumidores, o que também é um dos benefícios de investir nesse negócio. Professor de economia do Centro Universitário Una, Rodrigo Rabello ressalta que o público já é cativado pela própria natureza do produto e da religião, o que facilita as vendas.
“O mercado é promissor principalmente porque existe um vínculo emocional muito intenso entre os clientes e os produtos vendidos. Além disso, é um mercado imune à crise, pois é muito constante, não tem sazonalidade e tem um apelo muito emocional, muito simbólico”, diz ele.
A costureira Leia Cordeiro, de 68 anos, é um exemplo da fidelidade do público citada pelo professor de economia. Moradora da regional Venda Nova, ela foi até a unidade da Loja Ômega no centro de Belo Horizonte para fazer compras. “Venho aqui porque os preços são mais atrativos. Vim comprar uma Bíblia, pois as daqui são de boa qualidade e têm o que preciso: uma letra maior para ajudar na leitura”, diz, aos risos.
Leia também adquiriu uma harpa cristã – livro que reúne cânticos entoados nas igrejas. A loja, segundo ela, é um ambiente que transmite paz em meio à correria do dia a dia. “Quando entrei aqui, já senti que realmente Jesus se faz presente neste lugar e está com suas mãos estendidas sobre todos. Aqui é tão calmo que nem parece que estamos no centro de BH”, afirma.
Leia saiu de Venda Nova para ir até a unidade da Ômega no centro de BH (Fred Magno / O TEMPO)
Cuidados no setor
Se, por um lado, a presença de um público fiel é um dos benefícios desse mercado, por outro, também é um segmento que exige muito cuidado. Conforme o professor de economia da Una Rodrigo Rabello, é necessário entender o setor profundamente para que, de fato, os negócios deem certo.
“Esse mercado se difere dos demais. Normalmente, os consumidores (de maneira geral) têm um aspecto racional para tomada de decisões. Eles analisam utilidade, risco, retorno e outros fatores. Quando se trata do mercado religioso, o emocional, o simbolismo vêm à tona. Então, o empreendedor tem que ter a sensibilidade de captar essas peculiaridades, esse emocional, que para os fiéis é muito importante, e entender que isso representa muito na vida deles”, diz.
Professor de ciências contábeis da Estácio BH, Alisson Batista também destaca que é necessário cuidado ao apostar nesse mercado. “É importante ter conhecimento sobre a religião que se deseja trabalhar. Se for um nicho mais específico, dependendo do ramo de atividade, é necessário entender o que pode ser dito, o que pode ser comercializado, para não cometer graves erros e espantar alguns possíveis clientes. Essa esfera é bastante criteriosa e específica, não dá margem para outras interpretações. Tem que ser bem alinhado com os princípios da religião”, destaca.
Casas de artigos religiosos são refúgio
“Ter um local que respeite seu sincretismo religioso e a forma como você se conecta com Deus é fundamental”. A afirmação do umbandista Fabiano Alcântara, de 49 anos, traduz o sentimento de quem professa a fé em religiões de matriz africana e encontra nas casas de artigos religiosos um espaço de acolhimento e respeito. Os dados reforçam a importância desse tipo de ambiente.
Entre 2023 e 2024, o número de denúncias de violações à liberdade de crença recebidas pelo Disque 100 aumentou 67% em todo o país, ando de 1.481 para 2.472 registros. As religiões de matriz africana seguem como as mais atingidas: a umbanda lidera o ranking, com 151 denúncias, seguida pelo candomblé, com 117. A ouvidoria também registrou outras 21 denúncias relacionadas a diferentes práticas religiosas afro-brasileiras.
Há quase seis décadas, a Casa Abre Caminho é um dos tradicionais pontos de venda de artigos religiosos e de umbanda na rua Guarani, no centro de Belo Horizonte. O babalorixá Elton de Ogum trabalha no local desde a juventude. Atualmente com 64 anos, ele relata que o espaço é importante para aqueles que professam a fé de matriz africana e comenta o atual cenário.
“Nós ainda somos muito recriminados, mesmo com nossas religiões sendo muito procuradas. Infelizmente, alguns líderes religiosos seguem atacando nossa fé como forma de atrair fiéis. Nós não somos isso que dizem. Lamentavelmente, seguimos sendo alvo de ataques. Aqui, na casa, conseguimos acolher a todos, sem que sofram preconceitos”, afirma.
Babalorixá Elton de Ogum defende o respeito às crenças professadas por cada pessoa (Fred Magno / O TEMPO)
É com as vendas da loja que o babalorixá Elton de Ogum sustenta a família. “A minha sobrevivência vem toda daqui. Tenho que equilibrar tudo, pois preciso pagar o aluguel, os funcionários, os boletos, além da água e da luz. É preciso ainda ter uma margem de lucro, porque, se não tiver, é preferível fechar. Eu sou muito econômico e tenho um nome a zelar com os consumidores e fornecedores para continuar de pé”, diz.
Dentre os artigos mais vendidos na loja do babalorixá, o destaque vai para as velas. “O pessoal procura muito as velas de sete dias, os banhos de descarrego. As pessoas têm muita fé nelas, pois as deixam queimar por sete dias para que tenham forças para vencer as barreiras da vida”, conta.
Das vendas é que Elton tira o sustento da família (Fred Magno / O TEMPO)
O terapeuta Fabiano Alcântara havia ido até a loja comprar exatamente as velas quando conversou com a reportagem. “Elas representam a chama. Não importa a cor da cera, mas a essência da chama. O fogo da vela representa nossa fé, a identidade da fé que praticamos”, explica.
Alcântara destaca ainda que as lojas de artigos de umbanda dão conforto a ele e aos demais, considerando que professar a fé de matriz africana ainda é “desconfortável na sociedade”.
Fabiano afirma que se sente acolhido nas casas de artigos religiosos (Fred Magno / O TEMPO)
Sociedade brasileira e religiosidade
De acordo com Luciano Gomes dos Santos, professor de ciências sociais do UniArnaldo Centro Universitário de Belo Horizonte, o crescimento do mercado de artigos religiosos no Brasil pode ser atribuído a diversos fatores sociais, entre eles a busca crescente por espiritualidade em um cenário de instabilidade econômica, social e política. Ele destaca que, em momentos de crise, as pessoas tendem a se voltar mais intensamente para a fé, o que impulsiona o consumo de produtos relacionados à religiosidade, como terços, imagens, livros, velas e vestimentas litúrgicas. Segundo o especialista, isso reflete uma necessidade de conforto espiritual, proteção e sentido diante das incertezas do cotidiano.
“Além disso, o pluralismo religioso no país tem estimulado a diversidade de produtos disponíveis. Com o crescimento de religiões evangélicas, afro-brasileiras, esotéricas e espiritualistas, o mercado se diversificou para atender diferentes doutrinas e práticas”, afirma ele, que também destaca a digitalização e o uso das redes sociais, que facilitaram o o e a divulgação desses produtos.
“Influenciadores religiosos e líderes espirituais utilizam essas plataformas para promover tanto ideias quanto objetos de fé, criando comunidades virtuais que impulsionam o consumo. Assim, o mercado se fortalece também pela capacidade de se adaptar às dinâmicas de comunicação e comportamento da sociedade contemporânea”, afirma.
Outro ponto importante, que revela o porquê do crescimento desse tipo de negócio, segundo Santos, tem a ver com a maneira como a fé tem sido expressa no Brasil atualmente. Conforme ele destaca, há certa personalização, e muitas pessoas não se concentram mais em templos e em rituais tradicionais, construindo espaços de espiritualidade dentro de casa.
“Essa mudança indica uma prática de fé mais individualizada e cotidiana, em que o sagrado está integrado à vida doméstica e aos espaços privados”, afirma. “O consumo religioso deixa de ser apenas utilitário e a a ser também simbólico e afetivo, marcando a fé como elemento identitário em uma sociedade diversa e em constante mudança”, ressalta.
Com isso, há o protagonismo também de microempreendedores, o que gera, segundo Santos, impactos sociais e econômicos significativos nas comunidades locais, resultando em renda e emprego, especialmente em contextos de vulnerabilidade. “Muitos desses empreendedores são autônomos, artesãos ou pequenos comerciantes, que encontram no mercado religioso uma forma de sustento e estabilidade financeira, fortalecendo as economias locais”, destaca.
Já socialmente, diz ele, esses comerciantes também desempenham um papel importante. “Ao vender produtos associados a práticas culturais específicas, eles ajudam a manter vivas memórias coletivas, rituais e identidades religiosas. Além disso, suas lojas e bancas costumam funcionar como espaços de acolhimento e convivência comunitária, onde a fé é compartilhada e fortalecida. Esse modelo de empreendedorismo religioso também contribui para a valorização do trabalho informal e da produção artesanal. Em muitos casos, os próprios comerciantes são também os produtores dos artigos vendidos, criando redes solidárias de apoio e colaboração. Isso fortalece laços sociais, empodera indivíduos e famílias e promove o desenvolvimento de uma economia popular com raízes culturais profundas”, finaliza.