As refilmagens de “Vale Tudo” trouxeram de volta ao horário nobre da teledramaturgia brasileira alguns dos personagens mais icônicos das produções noveleiras do país, como a maquiavélica Odete Roitman, o corrupto Marco Aurélio e a alpinista social Maria de Fátima, vilões que, mesmo quando esbanjam crueldade, têm conquistado a simpatia do espectador. Nas redes sociais, cenas em que a filha de Raquel vende a casa da mãe para “vencer na vida” foram não apenas assistidas, mas também apoiadas por parte da audiência, que também vibra com a tiradas ríspidas do diretor da TCA e, até agora, vem dando razão à postura controladora da bilionária que está sempre lembrando a todos de como odeia o Brasil.

O fenômeno não é propriamente novo. Tanto que a Globo, no especial que celebrou os 60 anos da marca, convocou sete de suas vilãs mais temidas – e amadas – para participar da celebração. No caso do roteirista e pesquisador Gil Marcel Cordeiro, o fascínio que esses personagens exercem é tão grande que se materializou nas 466 páginas do livro “101 Grandes Vilões e Vilãs da Telenovela Brasileira”, lançado no final de março. 

A obra, fruto de um ano e meio de trabalho, entre pesquisa, escrita e revisão, mergulha no universo da vilania desde os primórdios da telenovela diária, no início de 1960, sendo dividida por décadas, de maneira que, no início de cada capítulo, há uma contextualização do momento histórico que vivido naquele momento – ajudando o leitor a compreender o sucesso e apelo de certos personagens.

Capa do livro '101 Grandes Vilões e Vilãs da Telenovela Brasileira' | Crédito: Artêra Editora/Reprodução
Capa do livro '101 Grandes Vilões e Vilãs da Telenovela Brasileira' | Crédito: Artêra Editora/Reprodução

“Vilões são engrenagens da narrativa”, opina o autor. “Eles movimentam a trama, definem os rumos da história do protagonista e, quando são bons, afetam inclusive os rumos dos personagens secundários, além de, claro, causar reações no público. Eles exercem um magnetismo, fazem a trama girar em torno de si”, comenta. “Há um prazer culposo em torcer por eles, porque sabemos que representam o lado errado da história”, diverte-se.

Sua seleção inclui clássicos como Nazaré Tedesco, de “Senhora do Destino”, Carminha, de “Avenida Brasil”, e Félix, de “Amor à Vida”, mas também figuras menos óbvias. “Fui buscando outros nomes a partir de um listão com uns 300 personagens, avaliando três critérios: a relação daquele vilão com o momento histórico em que ele está inserido, articulando essas relações entre a trama e a história do país; o sucesso que o personagem teve à época junto ao público; e, por fim, os intérpretes, buscando contemplar uma variedade maior de artistas”, detalha.

Para ele, alguns elementos são essenciais para um vilão cair no gosto popular. Entre eles, destaque para atributos como carisma, inteligência e estilo. “O público adora personagens afiados, com tiradas sarcásticas e uma pitada de glamour”, avalia, acrescentando que a entrega do ator é crucial – quando parece que estão se divertindo no papel, como Claudia Abreu, em “Celebridade”, o espectador se encanta.

Mais recentemente, Dias cita que a construção desses personagens trazem algo a mais: a consciência do seu papel na trama, comunicada ao público por meio de uma metalinguagem do gênero, com vilões citando falas de outros personagens emblemáticos.

Características

Vinicius Dias, autor e coordenador do curso de pós-graduação em Escrita de Telenovela pela Unifacha, pondera que nem todos os vilões de novelas conquistaram o coração do público. “Basta lembrar da Dóris, de Regiane Alves, em ‘Mulheres Apaixonadas’, que maltratava os avôs provocando uma grande indignação no espectador; ou mesmo de Felipe Barreto, personagem de Antonio Fagundes, em ‘O Dono do Mundo’, que arruinou a vida de uma virgem recém-casada e isso contribuiu para um desinteresse do público pela novela”, situa.

Mas, se o foco são os vilões que caíram no gosto popular, ele reconhece que o humor é um ingrediente que muitos têm em comum. “Nazaré Tedesco, de Renata Sorrah, em ‘Senhora do Destino’, fez coisas terríveis: roubou uma criança recém-nascida, jogou o marido da escada e tirou a vida de um homem eletrocutado em uma banheira. Mas as memórias que ficaram no imaginário do espectador foram os elogios a si mesma enquanto se olhava no espelho, os apelidos inusitados que dava para seus desafetos ou a dancinha vitoriosa na cama de sua rival. Carminha, vivida por Adriana Esteves, em ‘Avenida Brasil’ seguiu roteiro parecido: jogou uma criança no lixão e enganou pessoas durante uma vida inteira. Mas são as frases icônicas e cenas de humor que se eternizaram”, contextualiza.

Dias prossegue lembrando que outros vilões conquistaram o público graças a outra combinação: o excesso de sinceridade com uma pitada de humor mais refinado. “É o caso de Odete Roitman, vivida por Beatriz Segall na versão original em ‘Vale Tudo’, com suas críticas ao Brasil e às classes mais populares; de Branca Letícia, de Susana Vieira, em ‘Por Amor’, mulher elegante que falava o que pensava sem se preocupar com as consequências; de Laura Prudente, interpretada por Claudia Abreu, em ‘Celebridade’, com seu sarcasmo e as frases dúbias que, num primeiro momento, só o público entendia; ou de Laurinha Figueroa, personagem de Gloria Menezes, em ‘Rainha da Sucata’, com sua frontalidade e as tentativas, algo cômicas, de manter as aparências”, menciona, concluindo que estas antagonistas, que falam absurdos, acabam ganhando a simpatia do público pelo inusitado comportamento que não é aceitável na vida real.

“Quem nunca quis dar uma opinião polêmica em uma roda de conversa e se segurou temendo algum tipo de prejuízo social? Esses vilões, de certa forma, ocupam um lugar simbólico: estão autorizados a se posicionar sem filtro e sem noção, o que acaba cativando a audiência por essa via”, defende.

Limpinhos e cheirosos

Nazaré Tedesco, Félix e Carminha estão entre os vilões mais lembrados das produções mais recentes da televisão brasileira
Nazaré Tedesco, Félix e Carminha estão entre os vilões mais lembrados das produções mais recentes da televisão brasileira | Crédito: Globo/Divulgação

Chama atenção, ainda, o padrão estético da vilania nas telenovelas brasileiras. Diferentemente dos contos de fadas, onde o mal costuma ser associado ao feio e grotesco, como se monstruosidade fosse externalizada fisicamente, aqui os vilões são frequentemente bonitos, ricos e elegantes. 

Em parte, Gil Cordeiro atribui a opção por essa escolha estética à própria natureza da linguagem televisiva. “A TV trabalha com o desejo. Daí o interesse em envolver a vilania em um embrulho atraente e sedutora”, aponta, inteirando que é justamente Odete Roitman que, no final dos anos de 1980, personifica esse modelo de vilania, trazendo uma sofisticação para o mal. “Inclusive, para além da personagem, a própria Beatriz Seagall, sua intérprete, era reconhecidamente uma mulher considerada elegante”, situa.

O pesquisador defende que, a partir da virada do século, essa característica vai se tornar a marca registrada dessas personagens na TV brasileira. “Então, o que amos a ver em cena é um verdadeiro desfile de maldades em roupagem geralmente refinada”, analisa.

Já Vinicius Dias recorre aos primórdios do melodrama para, então, analisar a escolha pela representação dessa dicotomia do “belo e mal”. “O melodrama encontra suas mais famosas raízes no século XVIII no contexto da Revolução sa. Com a queda da monarquia e consolidação da burguesia houve espaço nas narrativas para a representação das classes trabalhadoras com a possibilidade de ascensão social”, começa.

“Acredito que a construção dos vilões como ‘pessoas ricas ou bem-sucedidas’ em contraposição aos mocinhos de classes menos abastadas ajuda a estabelecer essa lógica do ‘lugar onde se almeja chegar’. E enquanto os vilões se colocam com visíveis falhas morais, os mocinhos se apresentam como pessoas éticas, batalhadoras, que fazem questão de vencer na vida com seus próprios méritos. E quando conseguem ‘chegar lá’, resultado esperado em uma narrativa melodramática, isso serve de combustível de identificação para grande parte do público que se espelha nessa lógica”, assinala.

Divas do mal

Notadamente, na história da teledramaturgia, as vilãs costumam ser mais lembradas do que os vilões – a própria Globo, no seu especial de 60 anos, promoveu uma atração com personagens maléficas vividas apenas por atrizes.

Não é que não existam também vilões masculinos emblemáticos. “É o caso do Félix, de Mateus Solano, em ‘Amor a Vida’, com seu senso de humor; o Marco Aurélio, vivido por Reginaldo Faria na versão original de ‘Vale Tudo’, e sua famosa banana para o Brasil; o temido Leôncio, interpretado por Rubens de Falco em ‘Escrava Isaura’; ou o fantasmagórico Alexandre, do clássico ‘A Viagem’”, lista. 

Mas, porque as mulheres, nesse perfil específico de personagem, são mais famosas do que os homens? 

“A pergunta é complexa, mas arrisco dizer que isso se deve ao histórico de uma sociedade patriarcal onde há mais permissividade em relação ao comportamento masculino. Nesse sentido, quando uma personagem feminina rompe com alguns códigos e assume uma persona vilanesca há mais impacto”, aponta, que acrescenta: “É claro que, felizmente, muito se vem avançando na desconstrução desses estereótipos em relação as mulheres, mas como afirmou Fernand Braudel importante historiador da Escola dos Annales sa do início do século XX: ‘A mentalidade é a última coisa que muda em uma estrutura social’, portanto, essa ressignificação pertence ao longo prazo”.