A inadimplência do Fies, além de dificultar a expansão do programa, também causa um rombo bilionário aos bancos públicos. Juntos, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil (BB) amargam um prejuízo de ao menos R$ 15,7 bilhões, de acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O valor, no entanto, é maior, já que a cifra reada pelo governo é restrita aos contratos inadimplentes na fase de amortização entre 2020 e 2024.
No caso do Banco do Brasil, por exemplo, estima-se, no mercado, que o prejuízo com acordos não cumpridos chegue a R$ 26 bilhões, já que a instituição financeira operacionalizou o financiamento desde 2010 até 2018, quando a Caixa ou a atuar como agente financeiro exclusivo do chamado ‘Novo Fies’. Atualmente, conforme o Banco do Brasil, a instituição tem 838.213 contratos do programa em fase de amortização, dos quais 572.617 estão inadimplentes.
Já a Caixa garante ter 1.198.913 contratos em fase de amortização no banco, sendo que 746.304 estudantes estão inadimplentes. O banco não informou o valor total dos débitos em aberto. De acordo com a instituição, o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC), utilizado para honrar compromissos do Fies, tem R$ 20 milhões disponíveis para a cobertura da inadimplência dos estudantes.
Remodelar é o caminho? 476cm
O diretor de Relações Institucionais e Governamentais da Abmes, Bruno Coimbra, afirma que o cenário atual enfraquece instituições de ensino, já que, em algumas entidades - sobretudo na área da saúde - houve uma dependência de cerca de 70% do faturamento do Fies. “E isso acabou. Então, muitas instituições também fizeram toda uma reprogramação institucional para absolutamente não depender do Fies, porque se trata hoje de um risco gigantesco”, relata Coimbra.
Ele acredita que o modelo do Fies chegou à exaustão e deve ser revisitado, mas sem a criação de “novas versões”. “Há uma necessidade de revisarmos o programa dentro de uma lógica mais social, mais preocupada com as reais necessidades dos alunos e conciliando o Fies com o ProUni. Para melhorarmos essa adesão, a gente precisa enxergar o Fies e realocá-lo conjuntamente com outras políticas, especialmente a própria política do ProUni”, sinaliza ele, que não vê o programa se retroalimentando.
“Talvez a gente tenha feito uma concepção lá em 2017 que está empurrando instituições e alunos para fora do sistema. Essa lógica de não conseguir se retroalimentar, com os estudantes concluintes alimentando o sistema para financiar a entrada de outros, impacta demais e reforça ainda mais essa exaustão”, completa Coimbra, que reclama da falta de poder das instituições de ensino na renegociação de débitos com estudantes.
“O que a gente tem batalhado muito é que, em eventuais revisões, façam esse concílio. Cadê o aluno do ProUni? Estamos falando de uma ociosidade imensa no ProUni. Cadê essa possibilidade de, por exemplo, o aluno do CadÚnico, com um salário mínimo e meio, que teria muitas chances de financiar totalmente o que lhe falta em algum cenário, ter uma bolsa do ProUni? Por que esses dois perfis não estão se encontrando? Então, um primeiro movimento seria conciliar uma coisa com a outra. Um outro movimento, de cultura de pagamento e tudo mais, seria criar cenários de acompanhamento da inadimplência desse aluno, entender o que está acontecendo, ter possibilidades, dentro da eventual capacidade financeira da instituição, de negociar esse boleto, postergar eventuais pagamentos, entendeu? E não que isso ficasse absolutamente engessado com a Caixa Econômica Federal”, critica.
O presidente da Abruc, Claudio Alcides Jacoski, cita que a entidade, que representa instituições como a Pontifícia Universidade Católica (PUC), defende um modelo de Fies comunitário. “Seria necessária a criação de um fundo inicial pelo governo brasileiro e uma gestão adequada desse fundo para garantir uma retroalimentação a partir da cobrança desses estudantes, que poderia ser feita, inclusive, com um processo de pós-formatura, em que, ao se formar, esse aluno teria condições de destinar uma parte do seu pagamento para reanimar esse fundo com os recursos que obteve. Esse é um modelo que funciona muito bem em alguns países”, sugere Jacoski, ao citar o modelo vigente na Austrália.
Trava no Fies impacta mão de obra nacional 56312g
A redução do volume de novos estudantes no ensino superior com o declínio do Fies traz impactos também aos setores produtivos, afetando a geração de mão de obra qualificada no país. A observação é do diretor da Abmes, Bruno Coimbra. “Cerca de 80% da nossa atuação na educação superior é especialmente voltada para as classes D e E. Neste caso, não é que o Fies seja uma alternativa. Ele é a única alternativa. Se o estudante não é elegível para o ProUni e vai tentar o Fies, mas não consegue financiamento total, esqueça. Esse aluno não vai estudar. E muito desse contingente está nas pequenas e médias cidades, onde a empregabilidade e a mão de obra qualificada são vitais para a sobrevivência daquele município”, explica.
Coimbra pondera que o cenário atual pode tirar estudantes, sobretudo de classes mais vulneráveis financeiramente, do universo da educação superior. “Se as medidas atuais não alcançam esse aluno de baixa renda, do CadÚnico, as políticas bancárias e as políticas da própria instituição podem não estar enxergando esse aluno. Ou seja, as classes C, D e E não estão estudando, não estão gerando mão de obra qualificada, e isso vai impactando a economia daquele município e, consequentemente, de todo o país”, lamenta.
A tese é confirmada pelo economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Felipe Tavares. O especialista diz que há variáveis distintas que interferem na dificuldade de contratação de trabalhadores especializados. “E uma dessas variáveis é a entrada de pessoas no ensino superior. Porque só vai sair gente se entrar gente. E hoje o maior problema é que as pessoas não cumprem os requisitos esperados, principalmente em condições de trabalho mais sofisticadas”, atesta Tavares.
O economista salienta que o problema afeta, principalmente, cargos que necessitam de maior ou menor especialização. “São as duas pontas que a gente sofre mais”, diz. Tavares ressalta, ainda, que a queda na busca pelo ensino superior impactará ainda mais a produtividade do mercado de trabalho no Brasil.
“Nós temos uma produtividade baixa, isso é um problema histórico que está se acumulando, e a expectativa é que esse cenário não melhore. Um dos fatores para aumentar essa produtividade é elevar a escolarização das pessoas para termos profissionais mais sofisticados. E como está havendo queda nesse apelo ao ensino formal, teremos ainda mais dificuldades”, sinaliza o economista da CNC.
Dívidas do Fies explodem na Justiça 1i5d4n
Em meio ao avanço da inadimplência no Fies, o número de processos que envolvem o programa de financiamento explodiu no Brasil. Entre 2020 e abril deste ano, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que quase 90 mil casos foram judicializados no país. Em 2020, foram 231 novas contestações judiciais. O número saltou para 36.784 no ano ado. E já soma 11.527 processos até o dia 30 de abril.
Ao todo, no período, foram 89.610 novos protocolos abertos junto ao Judiciário - uma média de quase 46 mil processos por mês, conforme o levantamento. A base de dados do CNJ não aponta, porém, quais são os pontos de questionamento. O advogado e mestre em direito econômico Felipe Moreira destaca que as diversas alterações nas regras do Fies nos últimos anos têm relação direta com as ações judiciais.
“São pessoas que não estão contempladas por essas alterações que buscam aplicar novas regras a contratos antigos ou aplicar regras antigas a contratos novos, por serem mais favoráveis. Então, essas alterações envolvem valor financiado, forma de financiamento, prazo de carência, forma de amortização e taxa de juros”, cita.
Moreira afirma ainda que, com a judicialização, os estudantes conseguem ganhar prazos para o pagamento da dívida de financiamento. “Ao discutir judicialmente, ele pode, de fato, conseguir êxito e reduzir o valor da dívida, reduzir ou alterar os critérios para a apuração desse valor, mas, de toda maneira, o estudante ganha tempo para pagar. Ele pode conseguir uma tutela antecipada, uma liminar, que reduza temporariamente o valor da parcela mensal ou que suspenda o pagamento, e nisso ele ganha tempo para se reorganizar e colocar o pagamento em dia”, detalha o advogado.
Ofertas de negociação 34413w
Além dos programas de negociação oferecidos pelo governo federal, a Serasa Experian contabiliza 5 milhões de ofertas para mais de um milhão de estudantes que possuem atrasos em pagamentos do ensino superior. Lucas Tosati, especialista financeiro da Serasa, reforça que o nome negativado impactará a oferta de crédito para quem está inadimplente, reduzindo as possibilidades de o a modalidades de financiamento.
“A negativação, no geral, tem algumas consequências para a pessoa que está com o nome sujo. Você não vai ter o a créditos com boas taxas de juros em financiamentos de carros, por exemplo. E, além disso, se precisar de um empréstimo emergencial, você vai ter que recorrer a empresas especializadas nisso, mas, como elas assumem mais risco, acabam aumentando - e muito - a taxa de juros. Então, você paga duas, três vezes mais do que a média de mercado que pagaria anteriormente”, contabiliza Tosati.
No caso das dívidas do Fies, ele frisa que há um impacto maior, tendo em vista que o público deixa o ensino superior já inadimplente. “Dependendo da carreira - por exemplo, um advogado que acabou de cursar Direito -, pode abrir um escritório ou alugar uma sala para atender alguns casos. Se ele estiver negativado no momento em que for alugar essa sala, pode ser barrado por conta de uma negativação ada”, detalha.
Renegociação surte efeito 4l3f6s
A desenvolvedora Érica Rodrigues, de 29 anos, se formou em Jornalismo com o Fies em 2018, mas não conseguiu arcar com o financiamento em função das dificuldades para inserção no mercado de trabalho. “Em 2014, eu - e imagino que muitos colegas - tinha uma ideia de que, quando se formasse, a gente teria emprego. E aí, com emprego, poderíamos bancar a dívida e ter independência financeira. Mas não foi o que aconteceu. A gente se formou endividado e sem nenhuma perspectiva de estabilidade financeira”, disse.
Moradora de Belo Horizonte, Rodrigues permaneceu cinco anos na inadimplência com o programa, mas quitou a dívida em dezembro de 2023, a partir da renegociação lançada na reta final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. À época, a medida permitiu que os débitos fossem quitados com descontos acima de 90%. “A minha dívida estava em torno de R$ 50 mil, e era uma quantia que eu não tinha condição nenhuma de pagar”, lembra Érica, que abateu o ivo por pouco mais de R$ 6 mil.
O que diz o MEC? 2d4q21
À reportagem, o Ministério da Educação disse que havia uma perspectiva de mudanças a partir do Fies Social. O modelo, que entrou em vigor em fevereiro de 2024, ofereceu a possibilidade de financiamento de até 100% para estudantes com renda familiar per capita de meio salário mínimo, inscritos no CAD Único. A regra foi criada com o objetivo de beneficiar até 100 mil pessoas em 2024, o que não se materializou.
“Tinha aluno que já chegava aluno de baixa renda, chegava no curso e precisava pagar 30% ou 40% da mensalidade, às vezes não tinha e já começava o curso inadimplente”, disse. O ministro afirma que o Fies estava desorganizado, com muitos processos sendo manuais. “Precisamos diferenciar aquele que não paga porque não quer e aquele que não paga porque não pode. Então, estamos tentando cruzar e buscar as informações na receita, buscar as formações no Ministério do Trabalho para saber se a pessoa está empregada ou não, se tem renda ou não”, pondera o ministro Camilo Santana.
Dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) mostram que, até 2024, o programa de renegociação de dívidas alcançou mais de 387.653 acordos firmados em todo o país. “Essas renegociações resultaram em um ingresso expressivo de recursos, totalizando R$ 794.965.912,26 somente com o pagamento das entradas dos acordos”, finaliza o ministro.